Um novo regime da imagem: Rastreando novos alvos
Paranoia, in some
respects, is a modern-day development of an ancient, archaic sense that animals
still have that they're being watched... It's a lingering sense, that we had
long ago, when we – our ancestors – were very vulnerable to predators, and this
sense tells them they're
being watched. And they're being watched
probably by something that's going to get them...
Philip K. Dick, in The Collected Stories of Philip K. Dick (New York: Carol
Publishing, 1990)
It's not a matter of emancipating truth from every system of power but of detaching the power of truth from the forms of hegemony, social, economic and cultural, within which it operates at the present time.
Michel Foucault, in Truth and Power (New York,
Prometheus Books, 1979)
Nome
de ponta no segmento das artes visuais que lidam com os novos mídias
eletrônico-digitais e teórico de intensa atividade, com ênfase na exploração
das implicações culturais e políticas do uso das novas tecnologias, Jordan
Crandall exibe, pela primeira vez no Brasil, Track 3 – Compulsion/Registration, um segmento de seu projeto em
vídeo Drive (1998/2000).
Vídeo-instalação
em DVD originalmente composta de sete segmentos, Drive combina a linguagem e estrutura cinematográficas tradicionais
com novas tecnologias de sistemas de imagem digital concebidos para uso militar
- mecanismos de identificação, rastreamento e localização. O resultado
configura-se em uma instalação sobre a percepção e o condicionamento do corpo
humano aos aparatos tecnológicos – especialmente os de visão.
Mesmo
antes do crescimento recente das tecnologias de vigilância – surveillance -, mais poderosas e
eficazes a cada dia, diversos artistas têm explorado a dinâmica do ato de ver e
ser visto, investigando questões trazidas por novas práticas de monitoramento.
Assimilando as intensas mudanças tecnológicas, que geram equipamentos mais
poderosos e compactos, às inovações digitais nas comunicações, entretenimento e
marketing, assim como a incorporação
de tecnologias de padrão militar, o campo da vigilância tornou-se complexo,
multi-facetado e desenvolvido o suficiente para incursões culturais que
investigam as implicações e levantam questões acerca do acúmulo de imagens e
informação em nossa sociedade. Em Drive,
Crandall centra o foco na pesquisa tecnológica de mecanismos de controle
ópticos e de visão computadorizada e no deslocamento destas práticas do espaço
militar para outras instâncias.
Ao
apresentar a obra na Sandra Gering
Gallery (NY, Out-Nov. 1998), o artista dispunha alguns dispositivos biométricos
high-tech – equipamentos digitais
portáteis, como o Glasstron, um tipo
de 'walkman para os olhos' de última
geração, e um scanner de retina,
dispositivo de identificação de altíssima precisão, todos protótipos de uso
controlado, aos quais o artista teve acesso pesquisando, escrevendo cartas e
conquistando a confiança de corporações - e convidava o espectador a imergir
numa experiência sensorial normalmente inacessível ao público comum. O olhar humano era sobreposto a práticas de
visualização militarizadas e comparado a um projétil; e esta ‘visão
estratégica’ militarizada somava-se à sugestão de uma crescente militarização do olhar humano - noções
que evocam o comentário de Hal Foster[1]:
“...Such was the CNN effect of the
Gulf War for me: repelled by the politics, I was riveted by the images, by a
psycho-techno-thrill that locked me in, as smart bomb and spectator as locked
in as one.A thrill of techno-mastery – my mere human perception become a super
machine vision, able to see what
it destroys and to destroy what it sees”.
Ao
inserir estes ready-mades high-tech em
uma instituição de arte contemporânea, Jordan efetua um comentário sutil sobre
as possibilidades do processo de comercialização destes produtos, e a um só
tempo abala nossa propensão à fetichização e ao deslumbramento com as novas
tecnologias, comentando ainda a complexa relação entre a noção de propriedade
autoral e arte digital.
Em Drive, associado à
experiência óptica, a noção de movimento é
o que parece impelir e propulsionar, conceitual e formalmente, a peça. Crandall
explora o mote da imagem em movimento e o associa ao corpo: “Estou interessado em
como estas transformações da imagem, da visão e do corpo, mediadas pela
tecnologia, estão enredadas em novos regimes de aptidão e conveniência, novos
formatos de adequação e suficiência. Eles envolvem combinações entre corpos,
máquinas e imagens. Gosto de ver sempre a imagem em termos desse tipo de
aglomerado corpo-máquina-imagem”.
Com o advento das novas tecnologias digitais - incorporadas pela
indústria bélica e sistemas militarizados globais -, os movimentos passariam,
na concepção do artista e explicitado nesta obra, a não mais representar ações tanto quanto as rastrear, definindo uma mudança na representação
do processamento do movimento. É o
que vemos nas imagens de Drive: o
artista não registra movimentos, mas
os mapeia, rastreia. Onde antes o
movimento era descrito por uma simples linha, progressivamente, agora
configura-se multidimensional, em sincronia. E se avaliarmos que movimento não
equivale necessariamente a ímpeto narrativo, podendo ser aqui compreendido como
transmissão de um fluxo de informações que pode ser equacionado, calculado, não
é difícil assimilar que, ao acionar de um comando, um homem ou mulher na rua ou
em seu quarto subitamente se tornem um corpo mapeado – simultaneamente uma
forma natural e um conjunto de coordenadas.
Transitando
entre o paradigma cinemático e o da database
visual, Drive enfatiza os
complexos militarizados em que está imerso o imagético contemporâneo, seus
novos formatos de regras e os modos particulares de condicionamento pelos quais
passam a ‘armar’ nossa visão. Essa nova visão - uma visão armada[2]
- ativ–a formatos de regras e convenções que alteram profundamente nossos
padrões de percepção e assimilação e seus desdobramentos.
Um
destes desdobramentos possíveis é a identificação de novos tipos de mundos
eróticos que começam a aflorar, surgidos dentro deste universo de novas
técnicas de controle e vigilância. Esta nova dimensão erótica congrega pares
conformados entre homens e máquinas, novas percepções e sensações de prazeres
íntimos e invasivos - que usurpam o espaço privado - e novas formas de ver e
ser visto simultaneamente que conduzem a uma nova construção de sensações -
exibicionistas, voyeurísticas ou
sado-masoquistas - que estão ajudando a mudar os próprios contornos do corpo,
seus desejos e seu senso de orientação no mundo.
Na
atmosfera intimista e estilizada em que transcorre a quase-narrativa de Track 3 – Compulsion/Registration, em
que sensualidade e alguma perversão convivem nervosamente, constata-se a
premência de uma reflexão acerca dos limites entre o voyeurismo e a vigilância, o espaço privado e a existência
monitorada, instaurada pelos mecanismos de vigilância e controle que mais e
mais povoam a existência na metrópole contemporânea. Onde termina um e começa o
outro? É possível delinear ou identificar uma fronteira tangível, que
possibilite uma discussão de contornos éticos, na vasta rede de ações que
perpassa este território indefinido? A pertinência de discussões éticas neste
campo parece ser reforçada numa sociedade
de controle como se configura a de nossos dias, onde os mecanismos da
vigilância são incorporados até pela indústria do entretenimento, nos duvidosos
reality shows que proliferam
desordenadamente mundo afora, num fenômeno de mídia sem dúvida sintomático de
algo que não poderia ser aqui discutido propriamente.
Ainda
em Track 3, o artista se vale de
imagens que podem ser vistas, em suas próprias palavras, como metáforas tecnológicas, numa forma de
falar de tecnologia de um jeito que nos seja familiar, valendo-se de
objetos/coisas simples como um telefone ou um automóvel. Dentre as obsessões
algo específicas perceptíveis na obra, há uma cena em que a atriz encena uma
coreografia de movimentos repetitivos com o telefone, onde percebe-se um certo
padrão em seus gestos, uma compulsão a
ser codificada. Este é um mote que interessa a Crandall: “...um modo de pensar em como sistemas visuais
de alta tecnologia estão nos instilando certos hábitos, rotinas e formas de
comportamento – coisas e situações às quais nos ajustamos[3]”.
A
sugestão da presença do corpo e seus
sentidos, recorrentes nesta obra, parece trazer consigo uma dimensão de prazer
associada. Um prazer de se ajustar ou se adequar
a ou em algo, de ocupar e ser contido. De ser
controlado por algo. O significado do título, em inglês - Drive - é, primordialmente, pôr algo em
movimento - to set things going -,
além de diversas acepções possíveis; nesta peça, estaria em jogo não apenas um driving/moving process, mas também um
processo reverso, o de ser levado, conduzido pela tecnologia, ou pelo
desejo. Um sistema às avessas passa a existir neste universo, onde o ato de ver
torna-se o de ser visto, por meios de avançados sistemas de redes e bases de
dados computadorizados. Neste processo de investigação, Jordan examina uma
outra trajetória do desenvolvimento da representação, que corre em paralelo e
se entrelaça com nossas existências civis: “Ser
rastreado e codificado é também um modo de ser alguém que importa, alguém a
quem se presta atenção. É um processo de ‘vir a ser’ [4]”.
O artista já anunciava sua afinidade com
questões desta natureza em Suspension,
instalação multimídia apresentada na Documenta
X, em Kassel (1997), em que combinava vários tipos de projeção, só que para
criar um espaço interativo, em que as distinções entre real e virtual se
confundiam, enquanto o visitante tentava se adaptar a um ambiente que
modificava-se à medida que percorria a sala. Em Drive, Crandall incita a uma reconsideração da imagem em movimento. Traz para discussão como as imagens nos afetam
hoje em dia, tanto fisicamente quanto psicologicamente, e como elas estão
profundamente ligadas a mudanças de padrão em nossa percepção e assimilação,
numa poderosa combinação de fetiche e desejo, espaço público e privado,
sensualidade e esterilidade. Seu trabalho nos impele a considerar as
instituições e corporações por trás destes modos de visão, e o quanto estamos
sendo afetados por eles.
Deste
apanhado de imagens pós-cinemático,
como gosta de se referir, emerge um espaço condensado e tecnologicamente
híbrido, onde corpo e máquina entram em colapso, num
processo que gera certo estranhamento, na cultura de comunicação e
informação contemporânea.
Poder-se-ia mesmo observar – não sem algum atrevimento - que,
nesta visualidade híbrida que a obra congrega, é possível identificar uma
improvável mas estimulante combinação da análise histórica da vigilância de
Foucault (notadamente sobre a estrutura do panopticon[5])
com conceitos da crítica da visualidade pós-moderna e da simulação, propostos
por Jean Baudrillard (o espaço hiper-real e a cada vez mais difusa distinção
entre real e virtual[6]),
transpostos para uma atmosfera que se aproxima do universo cyberspace[7] e enclausurado anunciado por William
Gibson – muito próximo de nossa atual condição de existência nas metrópoles. O
resultado pode ser lido como um diagnóstico pertinente do nosso presente estado
de tecno-cultura, uma condição em que a urgência pela necessidade de discussão
crítica da real ameaça às liberdades civis - materializada nos onipresentes
sistemas de controle e vigilância - mais e mais se cristaliza[PC1].
[1] Hal Foster, in Return of the real
(Cambridge: MIT Press, 1996)
[2] Armed
vision no original, conceito sobre o qual
Crandall discorre em ensaios de sua autoria (veja mais em
www.jordancrandall.com).
[3]
Depoimento a Lawrence Rinder – curador para arte contemporânea do Whitney
Museum -, em apresentação na The Kitchen,
New York, 20-01-2001
[4] Ibid.
[5] Ver Foucault,
Michel. Vigiar
e Punir: Nascimento da Prisão (Petrópolis:
Editora Vozes, 1977)
[6] Conceitos e noções
recorrentes no pensamento de Baudrillard, marcadamente em Simulacro e simulação (Lisboa: Relógio
d’Água, 1991). Como leitura em conteúdos associados ao trabalho de Crandall,
sugere-se, do mesmo autor, The Gulf
War Did Not Take Place (Indiana University Press, 1995)
[7] Conceito introduzido no seminal
romance sci-fi de William Gibson, Neuromancer (Ace Books, 1995)